quarta-feira, abril 30, 2008

Brent e a T.V.

Brent decidiu que estava na altura de instalar Tv por cabo. Não porque tenha sido uma decisão visceral, mas porque foi batido por uma operadora telefónica hábil. Agora pode ter mais canais para zappar e escapar à matança e putrefacção social a que se assiste diariamente nestes espaços desinformativos. Brent pode assim pensar menos. Ás vezes as melhores decisões são involuntárias e Brent é um perito em tomá-las.

Brent e a hora do jantar

Um homem está a chocar a Áustria por ter mantido a sua própria filha presa numa cave durante 24 anos, durante os quais manteve uma relação incestuosa originando 7 filhos.
Brent ao ouvir esta noticia continuou a comer em frente à televisão, procurou o comando e mudou de canal, porque Brent não gosta de ver notícias que o possam engasgar à hora da refeição.
Mas não tem muito por onde escolher. Brent está inscrito numa rede social que o impele a ter reacções maniqueístas, ou a histeria ou a indiferença. E como ser recatado Brent não faz uso de nenhuma das duas. Limita-se a comer o jantar e a fazer zapping, sempre pela mesma ordem e pelos mesmos canais. Brent é como todos aqueles que veêm o telejornal como fonte de companhia e desinformação. Brent é um de nós e nós somos um de Brent. Somos todos bons fingidores.

terça-feira, abril 29, 2008

Flor é uma flor.
Habita os dias quentes e seduz sempre à passagem de alguém. Não é das mais formosas, mas tem manha. E cores caleidoscópicas.
E o que parece um simples colher de flor, transforma-se em estrangulamento. Flor está condenada a desaparecer às mãos de um alien que veio de longe atrás de um aroma insuportável.


Imagem: Alien a colher uma Flor (Paulo Dias, 2006)

Solução

A chave para a felicidade é a paz interior.
Basta então descobrir a maneira mais eficaz de a obtermos.
Parece fácil, não?

quinta-feira, abril 24, 2008

Indie Lisboa


Começa hoje a 5ª edição do Indie Lisboa, este ano com 238 filmes, 27 dos quais portugueses.
A programação encontra-se aqui.

Um ano depois

O meu primeiro post fez ontem um ano, assim como este blog.
Por definição estes momentos celebram-se, mesmo que silenciosamente.
O meu festejo silencioso vem acompanhado do ruído da palavra escrita mais cantada: Parabéns!

sexta-feira, abril 18, 2008

Abril àguas mil

Estes dias de dilúvio lavam a melancolia. E transformam-nos em seres provenientes da àgua, felizes por estarmos abrigados dela e, à semelhança do fascínio que uma fogueira provoca, ficamos embasbacados com a beleza das suas mudanças de orientação e o irromper do arco íris de volta completa.

quarta-feira, abril 16, 2008

Brent

Brent não gostou de ter sido retratado como um zombie que passa através da vida sem ser tocado por ela, mas não fez nada para o sublinhar. Essa mesma revolta não é habitual em Brent, não é nem nunca será rebelde. Limitou-se a engolir o almoço como sempre engole, no mesmo café do outro lado da estrada onde está todos os dias à mesma hora. Brent não gosta de enfrentar as pessoas, não gosta que o enfrentem. Mas quando isso acontece normalmente leva sempre a pior. Brent está agastado, mas não se nota. É um bom fingidor.

Pequenas estórias para pequenos #4

Todo o boémio tem na sua colecção de memórias um momento como este. É incontornável. Se não tem, então é porque anda a fazer algo de errado.
Ou então anda a fazer algo de errado poucas vezes. O caso de Elliott era exactamente este, fazer pouco e mal. Elliott queria ser boémio, seguir a tradição da família. Sendo descendente de uma nobre e infame linhagem de bon-vivants, não queria ser ele a trazer a vergonha de uma vida certinha para o meio de tantos ilustres noctivagos. Mas o sangue não lhe corria nas veias, Elliott anseava por ser certinho, beber sumos naturais, ter uma alimentação saudável, casar cedo e ter dois filhos e dois cães, um de cada. Quando fez quinze anos foi-lhe dado o manual da família, e era tradição que a partir do momento em que o recebesse o enchesse de estórias dignas de figurar no quadro de honra. Elliott estava simplesmente apavorado, não tinha o mínimo grão de boémia, nem jeito para dançar e menear ao som de um Dj a noite inteira. Sempre fora fraco, a mãe raramente abandonava a sua cabeceira, partira vários ossos por quedas insignificantes e falhava todas as provas de testosterona em que era envolvido. O seu Pai, Boémio de quinta geração, era rígido, mas paciente. Tinha a esperança que o genezinho acordasse finalmente do seu longo sono e o devolvesse ao sítio onde ele pertencia por direito e legado: a pista de dança. Depois do seu aniversário, começou a levar Elliott com ele para lhe mostrar os melhores poisos de iniciação, e até a alguns dos rituais onde os novos boémios se encontravam para partilhar experiências. Elliott apreciava a companhia do seu Pai mais do que estas mostras de talentos, tudo o que ele queria era ser atinadinho, como os miúdos da escola, chatos, desinteressantes, falar de toques e telemóveis, passar tempo nos chats e fazer directas a jogar jogos online. Era essa a vida que ele queria, nada de muito espalhafatoso.
Foi organizado um evento de Baptismo para todos os emergentes. A Elliott coube a díficil tarefa de ser o Rei da pista de dança. Andou apavorado durante dias, não conseguia dormir à noite, era este o momento porque toda a gente esperava, e toda a gente esperava que o desempenhasse com desenvoltura e atitude. Elliott era desajeitado, era assim que ele era. Como ser o Rei da pista tendo dois pés esquerdos e revestidos a chumbo?
Decidiu falar com o Guru da família, o conselheiro mor, aquele que aconselha os que se perdem do rebanho e mergulham no mar da angústia. Foi recebido com um sorriso complacente, parecia que era aguardado. Foi levado a ver fotografias dos seus antepassados a quem coube exactamente a mesma tarefa. Bares na Nova Iorque dos anos vinte, em clubes de Jazz, festas hippie dos anos sessenta cheias de missangas e amor livre, tacões enormes em discotecas dos anos setenta, penteados coloridos e mal cortados nos anos oitenta, moshes ao som de grunge nos anos noventa. Elliott viu toda a sua linhagem, em toda a linha, com todas as atitudes possiveis. Elliott aparece na imagem contente e confiante, como um bom Rei da Pista da sua linhagem dever ser. Perdeu o medo e não deixou de ser certinho, mas boémio. E hoje, casado, lê o manual e as suas estórias aos filhos, aos cães e é sempre o Rei da Pista de Dança.



Imagem: Pista de Dança (Paulo Dias, 2006)

Pequenas estórias para pequenos #3

Molly tem tido sonhos no mínimo estranhos; encontra-se vezes sem conta presa numa sala com um falo gigante. Já tentou de tudo; acordar de repente a meio da noite e virar-se para o outro lado, contar carneiros castrados para não voltar ao mesmo tema, fazer chichi na cama, ler a Biblia e o livro de São Cipriano ao mesmo tempo, beber àgua benta e comer pão de alho, mas nada. Nada resultava, tudo infrutífero. Molly vinha de uma família religiosa, onde tudo era obra de Deus. À mesa agradecia-se a refeição, eram lidos excertos do livro sagrado, os Dez Mandamentos era o seu filme favorito, à saída de casa punha sempre o pé direito primeiro e quando tinha boas notas nos testes olhava para o tecto e apontava discretamente para o céu com um sorriso cúmplice. Mas estes sonhos estavam a preocupá-la bastante, tinha vergonha de estar a ser observada pelo Todo Poderoso enquanto um falo também ele poderoso não se cansava de se encostar às paredes da sua consciência. Ficou assim durante dias, meses, anos até atingir a puberdade. Perguntou ao Padre que nome é que se dava a um sonho que se tem muitas vezes, ao que ele respondeu, pausadamente: Recorrente, minha filha, recorrente.
Ao longo dos anos a relação de Molly com Deus foi-se alterando. Começou por não ter coragem de rezar à noite, achando que ia levar um grande raspanete por estar a dar guarida a todas aquelas imagens profanas. Já nem com Jesus Cristo falava, com medo que este fosse fazer queixinhas ao Pai. Afastou-se gradualmente, cada vez mais, mas sempre com a sensação de estar a trair algo mais forte do que ela. Até que um dia estava à porta de uma exposição de um artista novato, de seu nome Paulo Dias, que estava a chocar a pacata vila e que o Padre numa das eucaristias tinha desaconselhado vivamente. Por estes dias Molly já não dava tanta atenção ao que o Padre dizia e resolveu ir espreitar. Entrou devagarinho, não fosse ela ser reconhecida por uma beata vigilante, daquelas que parecem jornais de notícias, e deslizou prudentemente para uma das salas contiguas à entrada. Estava mal iluminada, por isso esgueirou-se para dentro. Os seus olhos incharam as órbitas e reconheceu imediatamente a peça que estava encostada à parede: era o falo que a perseguia nos seus abundantes sonhos pecadores. Os seus sonhos eram premonitórios e afinal era uma visionária! Molly foi-se refugiar num lar de freiras, de livre vontade, a fim de restabelecer o contacto com Deus, Jesus Cristo e afins, o seu destino. Tinha muito para rezar, afinal os anos tinham passado e havia muitos avés para recitar. É uma beata pacata Molly, virgem, solidária, ajuda o Padre sempre que pode, o coitado já está velhinho, apanhou Alzheimer e esquece-se com frequência que Deus afinal existe.


Imagem: Contemplação Fálica ou a Inveja do Pénis (Paulo Dias, 2006)

terça-feira, abril 15, 2008

Pequenas estórias para pequenos #2


A Bebel tem uma característica única: consegue dobrar as pernas e deslizar sobre encostas geladas. Não é muito útil, até porque com as alterações climáticas os climas setentrionais estão em mudança. O degelo dos pólos vai acabar por condenar a a nossa pobre amiga ao tédio e a perder corridas com tartarugas e até lebres. Mas Bebel pensa em tudo; viu na televisão que existe uma oficina onde pode revestir as suas pernas de titânio, um material super resistente e assim usar a sua invulgar elasticidade para se locomover em qualquer superfície, com a vantagem de deitar faiscas aos que atrás dela vão comendo o seu pó. Divertido, não? Pôs-se a caminho e deslizou mais depressa do que nunca, com tanta velocidade que ficou com a cara lisa e o cabelo espetado para trás.

Imagem: Auto Locomoção com Cabelos ao Vento (Paulo Dias, 2006)

Pequenas estórias para pequenos #1



Este é o homem do chapéu pequeno orfão da sua cabeça. Está à procura dela, mas como perdeu os olhos só lhe resta a intuição. Infelizmente saiu de casa e esqueceu-se dela na gaveta de cima da cómoda. Neste preciso momento está a pensar se deve voltar para trás para a ir buscar ou se continua sem ela, seguindo apenas o caminho mais à mão.
Sem sistema olfactivo, sem nada que o possa guiar para além do tacto, seria complicado encontrar a casa onde está a gaveta que guarda esquecida a intuição. Decide congelar este momento e posar para mim, imortalizando a dúvida e a curiosidade sobre a odisseia que o espera.


Imagem: A Encruzilhada (Paulo Dias, 2006)

Um dia na vida de Brent

Brent chega a casa, como todos os dias chega a casa, depois de todos os outros dias a chegar a casa, sensivelmente à mesma hora. Abre a porta, é recebido entusiasticamente pelo cheiro que deixou antes de sair e dirige-se tranquilamente para o sofá que o aguarda impaciente. Desembrulha o suculento jantar que compra sempre ao virar da esquina, a mesma que dobra obstinadamente em direcção ao meio de transporte que o carrega dali para fora. Verifica o telefone fixo; não tem mensagens novas. Senta-se em frente a um ecrã vazio, liga a tela estática, acompanhando a sua refeição. Brent suspira de alívio por mais uma vez ter encontrado tudo no seu lugar; os telejornais, as novelas, as séries e as vendas. Pensa em sair de casa e dobrar a esquina contrária à habitual, aquela que o leva em direcção aos amigos que falam pelos cotovelos mas ainda assim nada articulam de novo. Brent senta-se no mesmo lugar, na mesma tasca, pede o habitual e bate o maço de tabaco enquanto bebe o café curto. Sai-lhe da boca a mesma pergunta e obtém a mesma resposta. Sempre. Mas a cordialidade de Brent é inesgotável, lá vai ele sorrindo pepsodentemente das piadas badalhocas que saiem da boca do membro engraçadinho do seu grupo. Brent olha para as horas de vinte em vinte minutos, à espera do momento oportuno para dizer que o dia já vai longo e que não descansou o suficiente durante o sono. O mote está dado inadvertidamente, agora a conversa emigra para um desfilar de maleitas e de queixas sobre o quotidiano. Foram-se as piadas fáceis, quebrou-se o gelo que agora derrete, já alguns embriagados sugerem outros sítios para continuar a falar sobre rigorosamente nada. Brent não quer ser indelicado, aceita levemente a sugestão e junta-se a eles. Saiem com os casacos ainda na mão. Não faz frio, estão uns agradáveis 20 graus e é Primavera.
Brent sugere um sítio calmo, com vista para a cidade e as suas colinas. Os mais influentes sugerem um bar onde possam passar revista às mulheres e homens que ali se encontrarem com eles. Brent sente-se derrotado, mas nada diz. Limita-se a concordar e a acompanhar. Sente que é mais um daquele grupo. Leva uma pancadinha condescendente nas costas e entra num dos carros. Brent e os amigos descem as escadas que conduzem ao sítio habitual depois do sítio habitual. Nele se encontram as mesmas pessoas, visto que é o mesmo dia da semana. Dirige-se ao bar e pede o que sempre pede. Cumprimenta o rapaz novo que se encontra encostado ao balcão, dá-lhe uma leve pancadinha nas costas. Olha à volta, vê pessoas novas, outras menos novas, umas feias, outras bonitas, umas que sobressaiem por não terem nenhum caractér distintivo. Fica a ouvir as conversas cruzadas dos seus amigos, finge que presta atenção. Brent é um bom fingidor, nunca se percebe que a mente dele nunca está no mesmo local que o corpo.
Mais uma bebida para o grupo, mais um brinde a clichés que por serem pouco usados parecem mais profundos. Mais um sorriso lúteo. Já têm lugar para se sentar. Escolhem a mesma mesa, ao canto, onde todos podem estar nos seus lugares habituais. As horas vão passando, os bocejos vão aparecendo e a mente de Brent já veste o pijama. Em breve alguém irá sugerir o final da noite e todos irão concordar. E Brent irá ligar o despertador para poder dobrar a mesma esquina à mesma hora de sempre.

Texto: Paulo Dias