quarta-feira, abril 16, 2008

Pequenas estórias para pequenos #4

Todo o boémio tem na sua colecção de memórias um momento como este. É incontornável. Se não tem, então é porque anda a fazer algo de errado.
Ou então anda a fazer algo de errado poucas vezes. O caso de Elliott era exactamente este, fazer pouco e mal. Elliott queria ser boémio, seguir a tradição da família. Sendo descendente de uma nobre e infame linhagem de bon-vivants, não queria ser ele a trazer a vergonha de uma vida certinha para o meio de tantos ilustres noctivagos. Mas o sangue não lhe corria nas veias, Elliott anseava por ser certinho, beber sumos naturais, ter uma alimentação saudável, casar cedo e ter dois filhos e dois cães, um de cada. Quando fez quinze anos foi-lhe dado o manual da família, e era tradição que a partir do momento em que o recebesse o enchesse de estórias dignas de figurar no quadro de honra. Elliott estava simplesmente apavorado, não tinha o mínimo grão de boémia, nem jeito para dançar e menear ao som de um Dj a noite inteira. Sempre fora fraco, a mãe raramente abandonava a sua cabeceira, partira vários ossos por quedas insignificantes e falhava todas as provas de testosterona em que era envolvido. O seu Pai, Boémio de quinta geração, era rígido, mas paciente. Tinha a esperança que o genezinho acordasse finalmente do seu longo sono e o devolvesse ao sítio onde ele pertencia por direito e legado: a pista de dança. Depois do seu aniversário, começou a levar Elliott com ele para lhe mostrar os melhores poisos de iniciação, e até a alguns dos rituais onde os novos boémios se encontravam para partilhar experiências. Elliott apreciava a companhia do seu Pai mais do que estas mostras de talentos, tudo o que ele queria era ser atinadinho, como os miúdos da escola, chatos, desinteressantes, falar de toques e telemóveis, passar tempo nos chats e fazer directas a jogar jogos online. Era essa a vida que ele queria, nada de muito espalhafatoso.
Foi organizado um evento de Baptismo para todos os emergentes. A Elliott coube a díficil tarefa de ser o Rei da pista de dança. Andou apavorado durante dias, não conseguia dormir à noite, era este o momento porque toda a gente esperava, e toda a gente esperava que o desempenhasse com desenvoltura e atitude. Elliott era desajeitado, era assim que ele era. Como ser o Rei da pista tendo dois pés esquerdos e revestidos a chumbo?
Decidiu falar com o Guru da família, o conselheiro mor, aquele que aconselha os que se perdem do rebanho e mergulham no mar da angústia. Foi recebido com um sorriso complacente, parecia que era aguardado. Foi levado a ver fotografias dos seus antepassados a quem coube exactamente a mesma tarefa. Bares na Nova Iorque dos anos vinte, em clubes de Jazz, festas hippie dos anos sessenta cheias de missangas e amor livre, tacões enormes em discotecas dos anos setenta, penteados coloridos e mal cortados nos anos oitenta, moshes ao som de grunge nos anos noventa. Elliott viu toda a sua linhagem, em toda a linha, com todas as atitudes possiveis. Elliott aparece na imagem contente e confiante, como um bom Rei da Pista da sua linhagem dever ser. Perdeu o medo e não deixou de ser certinho, mas boémio. E hoje, casado, lê o manual e as suas estórias aos filhos, aos cães e é sempre o Rei da Pista de Dança.



Imagem: Pista de Dança (Paulo Dias, 2006)

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