quinta-feira, setembro 18, 2008

Gotas revolucionárias de café quente



" (...) O desconhecido observa as redondezas e escolhe um lugar para se sentar…
Os nossos olhos encontram-se a meio caminho da sala e detêm-se por instantes…parece ter escolhido vir na minha direcção… pergunta-me se está disponivel o assento, ao que eu respondo afirmativamente… estava, de facto, curioso para mergulhar na sua proveniência…
Por momentos ficamos em silêncio, à semelhança de toda a sala que nos observa, suspensa de todas as suas actividades…o relógio de parede hesita por uns segundos, sem saber como imprimir ritmo aos ponteiros também imóveis…penso em recortar o ambiente à nossa volta, em isolá-lo, mas tenho medo de modificar toda a envolvente que permeia este momento …
Resvalamos nos encostos destas cadeiras frias e eis que surge a primeira palavra: ele pergunta-me se o café aqui servido possui instintos revolucionários… Confesso que fiz um esforço tremendo para tentar perceber aquilo que ele estava a dizer; tudo o que consegui articular foi uma expressão de incredulidade tal que ele não conteve um sorriso…
Pedi-lhe delicadamente que me mostrasse como é que uma simples chavena de café poderia conter instintos revolucionários, como é que poderia orquestrar revoltas contra o estado das coisas e mobilizar as pessoas nesse sentido… foi o ponto de partida para a conversa mais bizarra que alguma vez tinha mantido com um estranho… começou por dizer que não estava ali de corpo inteiro, que naquele momento era um fragmento dele próprio que interagia amenamente comigo… falou da forma como as gotas quentes se reúnem no fundo de recipientes, como insuspeitas aprendem a ler mentes humanas e a aperfeiçoar efeitos secundários, da forma inteligente como planeiam fugas insidiosas em tampos de mesas redondas das mais altas patentes… arrependi-me amargamente de não ter comigo o bloco de notas matinais para poder confrontar mais tarde a veracidade daquele momento.
Apesar da aparente surrealidade daquele ser e da estranheza causada pelo seu discurso delirante, era afável; a textura da sua voz era familiar; sim, igual a um dia de final de setembro, soalheiro mas com a nostalgia própria de fim de estação… combinava uma lufada de ar fresco com o mistério do dia de hoje (...)"


Texto: Excerto de "Uma breve história matinal" de Paulo Dias
Pintura: Emil Nolde (1867-1956)

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